Discipulado Eclesiocêntrico: O sustento da máquina eclesiástica
Talvez, ao longo desta leitura, você pense que tenho aversão
a templos — esses que costumamos chamar de igrejas. Mas não! Não tenho, e nem
meu coração se inclina para tal sentimento de repúdio. Também não tenho o
intuito de erguer a bandeira do movimento evangélico que tem crescido nos
últimos anos — os chamados “desigrejados”. Trata-se de fiéis que renunciaram ao
vínculo com a organização institucionalizada por causa de insatisfações,
decepções, desvios teológicos, entre outros motivos.
Considero que o templo é uma organização, enquanto a igreja
que o frequenta é o organismo vivo — aquele que dá sentido à existência da
organização. Por isso, não tenho dificuldades em ser igreja no templo; vivo
minha fé comunitária dentro do contexto de uma igreja organizada.
Amo meus irmãos em Cristo e sei que todos nós somos membros
de um único corpo. Esse corpo é a verdadeira igreja, pois acredito que não há
igreja composta por uma só pessoa. Eu não sou igreja — nós somos!
O que pretendo com esta reflexão é lançar um olhar sobre a praxis das organizações eclesiásticas, especialmente no que diz respeito a um discipulado voltado para o bom funcionamento da própria instituição – o que chamo aqui de máquina eclesiástica – em vez de um discipulado que prepare as pessoas para viver e cumprir a Missio Dei (Missão de Deus) em seu cotidiano.
Uma breve definição e propósito da igreja
No Novo Testamento, o termo utilizado para a palavra
"igreja" é ekklesia. Essa palavra é composta pela preposição ek
(para fora de) e pela raiz kaleō (chamar). Podemos, então, traduzi-la
como “chamada para fora”.
Gedeon Lidório, no livro Missão para a Cidade: ações
ministeriais transformadoras, observa que esse termo nos oferece uma
compreensão profunda:
“Uma comunidade que tem como
alvo óbvio da sua existência o fato de ter sido criada a partir de pessoas que
foram convocadas para agir fora do contexto interno da própria convocação.”
(LIDÓRIO, 2012, p. 87)
Nesse sentido, a igreja é convocada para uma ação que acontece fora do espaço de sua própria convocação — fora dos muros do templo. Ou seja, seu propósito transcende o culto e a estrutura organizacional: ela existe para impactar o mundo presente, sendo sal e luz, e participando ativamente da Missio Dei, espalhando as boas novas do Reino.
Formando discípulos para a máquina eclesiástica
Uma realidade notável em nossos dias é que muitas
organizações eclesiásticas têm formado discípulos para si mesmas. Não afirmo
que isso ocorra de maneira intencional, mas sim que, muitas vezes, não percebem
quando o fazem — justamente por falta de uma releitura constante do papel
principal da igreja e de sua missão no mundo.
Com isso, quero dizer que o foco tem sido um discipulado
moldado para sustentar a máquina eclesiástica — formando membros superativos
nos cultos e departamentos, mas totalmente passivos na missão de Deus. São
pessoas comprometidas com a agenda da organização, mas paradas no tempo quando
se trata de praxis e anuncio das boas novas no cotidiano — na vizinhança, no
trabalho e, muitas vezes, até mesmo dentro de casa.
Assim, percebemos uma negligência por parte da igreja em
relação ao seu papel principal: ser participante da missão que, em primeiro
lugar, não nasce na igreja, mas no próprio coração de Deus.
O que vemos, no entanto, é uma igreja que perdeu seu
verdadeiro propósito, pois seu ensino tem se concentrado em um evangelho
“intra” — pregado e praticado dentro das quatro paredes da instituição. A
igreja ensina e encoraja as pessoas a serem “obreiros locais”, “diáconos
locais”, “músicos locais”, “pregadores locais” — e muitos acabam acreditando
que essa é a única e principal forma de se fazer a “obra” ou “missão” de Deus.
Na verdade, essa é uma forma legítima de participar da missão, mas não é
— e jamais deveria ser — a única.
Com isso, forma-se um processo em que as pessoas passam a se
ver como “atores ministeriais”, cada uma com uma missão: servir com seus
talentos e dons somente à própria organização. Tornam-se, assim, pessoas
eclesiocêntricas — ensinadas a viver em função de um ativismo desenfreado, de
domingo a domingo, em nome de uma pseudo-santidade, enquanto se esquivam do ide
de Jesus e dos campos que já estão brancos para a colheita.
“Levantai os vossos olhos,
e vede as terras, que já estão brancas para a ceifa.”
(João 4:35)
Onde estão os ceifeiros? Talvez ocupados demais mantendo a máquina eclesiástica.
Trabalhando para si mesmo
No livro Jesus Puro e Simples, Wayne Cordeiro
compartilha uma parábola que nos ajuda a entender com clareza o cenário que
vivemos. Contarei com minhas palavras e resumidamente:
Conta-se uma antiga fábula
sobre um fazendeiro que, insatisfeito com a graxa vendida nas lojas da região,
decidiu produzir a sua própria. Misturando ingredientes, criou uma graxa de
excelente qualidade. A notícia se espalhou, e os vizinhos começaram a pedir que
ele fabricasse também para eles.
Com a crescente demanda, ele
investiu em equipamentos, contratou funcionários e, eventualmente, derrubou sua
fazenda para construir uma grande indústria, dedicando-se exclusivamente à
produção em larga escala.
Porém, algo passou
despercebido: à medida que a indústria crescia, também crescia a necessidade de
graxa para manter suas próprias máquinas funcionando. Com o tempo, quase toda a
produção era usada internamente, apenas para manter a estrutura operando. Até
que, consumida por sua própria manutenção, a indústria faliu.
Agora pense nas igrejas atuais… o que muitas estão fazendo, ciêntes ou sem perceber?
Estão usando tudo o que produzem para se manter: fabricando
“dopamina gospel”, e com pessoas sobrecarregadas, exaustas e, muitas vezes,
feridas. O templo pode até estar aberto, mas falido em sua missão — a de
discipular pessoas para Jesus e realizar a sua missão.
“A seara é grande, mas os
trabalhadores são poucos.”
(Mateus 9:37)
Mas onde estão os trabalhadores? Onde estão os que se dizem
discípulos — e até “apóstolos”?
A resposta é clara: estão ocupados trabalhando para si
mesmos.
Envolvidos em suas próprias “indústrias gospel”, produzindo “graxa de boa
qualidade” para lubrificar interesses pessoais e ambições disfarçadas de
piedade.
O resultado?
Pessoas especialistas em barganhar com Deus.
Outros se tornaram verdadeiras máquinas de ativismo e legalismo, onde "ser
espiritual" é sinônimo de viver na e para a
organização.
E há ainda aqueles preocupados em produzir sermões impactantes para o culto —
tentando compensar a falta de impacto que sua vida causa nas pessoas.
Sobre tudo isso, Wayne Cordeiro nos diz com tom de ironia:
“Recebemos um mandado de Deus
para levar seu coração ao mundo. Em vez disso, construímos uma subcultura
cristã. Hoje, temos música própria, estilos, cinemas e concertos próprios.
Temos cooperativas de crédito, programas de dieta e até balas de hortelã com
versículos impressos na embalagem (porque os cristãos, claro, devem ter hálito
mais fresco que os não cristãos)!
Ora, não há nada de intrinsecamente errado com essas coisas. Eu também tenho
participação em muitas delas! Mas esquecemos de quem somos e do que estamos
fazendo neste mundo.”
(Cordeiro, 2014, p. 34)
Discípulos ou objetos?
O irmão e a irmã que cantam, os que cuidam das crianças, os
que limpam o templo, o irmão do som, o músico que toca — todos são muito úteis.
Contudo, quantos são realmente cuidados? Um discipulado que é eclesiocêntrico também
corre o risco de transformar seus membros em meros objetos.
Quando a estrutura organizacional se torna o centro, as
pessoas deixam de ser vistas como irmãos e irmãs em Cristo, e passam a ser
identificadas como “colaboradores”, conhecidas por aquilo que realizam: o rapaz
do som, o tecladista, o pregador, o pastor — objetos essenciais para o
ornamento e o funcionamento da máquina.
Mas Jesus não morreu numa cruz para que nos tornássemos objetos de culto ou “colaboradores” mantenedores do show gospel. Ele não chamou objetos para segui-lo — chamou filhos, seguidores, discípulos. E discípulos não são gerados pelo uso, mas pela convivência entre irmãos, pelo ensino constante da Palavra e, consequentemente, pela praxis diária no cotidiano.
Sinceramente... Concluo
Sei que, talvez, minhas palavras tenham soado ásperas. Mas,
como disse no início desta reflexão, meu objetivo foi trazer luz — ainda que de
forma provocativa — sobre a praxis das organizações eclesiásticas do nosso
tempo, convidando a uma reflexão honesta e sincera sobre como temos exercido o
discipulado.
Creio que a igreja, enquanto organização, precisa ser mais
ativa não apenas dentro do ambiente eclesiástico, mas no mundo — preparando
discípulos extraeclesiásticos: pessoas que falem de Cristo não apenas com
palavras, mas, principalmente, com ações (organismo vivo).
Precisamos de organizações que discipulem para a vida, e não
apenas para os cultos; que formem uma igreja atuante no cotidiano — não como a
expressão de uma instituição, mas como o reflexo de Deus no mundo.
Que Deus nos ajude, pois honestamente, também sou parte de tudo isso.
Nunca tinha visto essa questão da Igreja/Individuo agora com tanta clareza. Estamos dentro da Igreja, tendo a missão de influenciar o mundo (que está fora), porém estamos tão focamos com os nossos problemas intermos(que não são poucos) e que nos sentimos sufocados, tentando resolver o nosso, o do vizinho, cumprindo a parte prática da liturgia dos cultos, tentando desviar das setas do inimigo, tentando sobreviver, enfim, que acabamos nos isolando dentro da Igreja tbm pq é confortável.
ResponderExcluirAqui ninguém vai mexer comigo, ou aqui estou protegido, e tentando resolver meus conflitos, mas e os que estão fora? E os que estão dentro mas tbm precisam de socorro?
Claro é importante buscarmos forças dentro da Igreja, receber e fazer oração com os irmãos, ouvir a palavra, exercer nosso ministério, mas....como serei "luz" e "sal" se as demandas internas estão nos sufocando.
Fazendo um comparativo com uma empresa, organização, conseguimos enxergar tantas diferenças assim?
Cargos, funções distribuídas, crises no relacionamento pessoais, tarefas mal cumpridas, excesso de trabalho de alguns, má liderança, enfim... Talvez só precisamos colocar o Amor puro e simples na frente, como está em 1 Corintios 13:7. Viver esse Amor como base pra fazer a grande diferença.